Ody Fraga (de preto) durante as filmagens de "A Fêmea do Mar", que dirigiu em Florianópolis, no ano de 1980. À esquerda da foto, o então assistente de direção Guilherme de Almeida Prado, que se tornaria brilhante cineasta nos anos 1990. Nua, a atriz portuguesa (naturalizada brasileira) Aldine Müller
HÁ 20 ANOS, ODY FRAGA MORRIA EM SP
Este ano, cineasta catarinense completaria 80 anos de nascimento. Ele participou ativamente do Grupo Sul
Ontem (quinta-feira) morreu o ex-diretor de cinema Ozualdo Candeias, um dos precursores da pornochanchada no Brasil. A morte de Candeias me deu o gancho que precisava para resgatar nos arquivos uma entrevista que Ody Fraga concedeu em abril de 1980 ao Jornal da Semana (número 63). Participei da entrevista e acompanhei as atividades do cineasta catarinense que foi companheiro de Candeias e outros profissionais do cinema erótico brasileiro daqueles tempos (o ciclo da pornochanchada estava terminando).
Ody veio dirigir "Jeruza do Mar" – que depois teve o nome alterado para "A Fêmea do Mar", por ser mais comercial –, um longa-metragem rodado em vários cenários da Ilha de Santa Catarina, mas principalmente na Praia Mole.
Ex-seminarista, Ody foi um personagem fundamental da cultura catarinense nos anos 1940 e 1950. Participou ativamente do Grupo Sul, na área teatral, tendo sido o primeiro diretor a comandar uma encenação de um texto de Jean-Paul Sartre no Brasil. Foi morar em São Paulo no início da década de 1960, tendo sido um dos pioneiros da TV2 Cultura (Fundação Padre Anchieta). Da TV, acabou na Boca do Lixo, tornando-se diretor de inúmeras pornochanchadas de sucesso, como a comédia "Histórias que Nossas Babás não Contavam".
Ody morreu em 1987, aos 59 anos. Seu nome é citado como um dos mais importantes da cinematografia marginal brasileira. Um de seus discípulos mais importantes foi Guilherme de Almeida Prado, que dirigiu algumas obras interessantes do cinema nacional nos anos 1980 e 1990 - entre as quais "Perfume de Gardênia" e "A Dama do Cine Shangai". Guilherme atuou como assistente de direção em "A Fêmea do Mar".
Jornal da Semana – A pornochanchada corresponde ao kung-fu no Brasil?
Ody Fraga – Não. Há várias perspectivas e alguns erros semânticos da interpretação do fenômeno pornochanchada. Em primeiro lugar, ela é manipulada como uma arma contra o cinema nacional em si, estimulada pelas multinacionais e atingida por uma área da crítica mais conservadora - que aprendeu a falar, a pensar e a ir ao banheiro com o cinema americano. Eles aproveitam o termo pornochancada e tacham qualquer filme brasileiro como tal.
JS – Mas o que é pornochanchada?
Ody – Boa pergunta. Eu não vi até hoje qualquer articulista ou crítico de cinema encarar seriamente o problema e se perguntar: mas por que apareceu a pornochanchada? É o nosso kung-fu? Foi, não é mais. A pornochanchada é hoje uma modalidade de cinema absolutamente decadente.
JS – Quando e como surgiu?
Ody – Ela surgiu num momento agudo do cinema brasileiro, pura e simplesmente como fator de sobrevivência profissional. Eu costumo dizer o seguinte: a pornochanchada, no cinema, é o grande produto cultural da revolução de 1964. Ela é filha do AI-5. Na hora em que o cinema, todo o pensamento, toda a análise e toda a verdade foram estrangulados, uma solução de sobrevivência foi partir para a pornochanchada.
JS – Quer dizer, sai-se do cinema dito engajado e parte-se para o sexo...
Ody – É. Um estudioso da Faculdade Álvares Penteado, de São Paulo, fez uma pesquisa sobre a colocação do sexo como tema de choque no cinema brasileiro. E por incrível que pareça, ele utilizou como exemplo o primeiro filme do gênero, coincidentemente um filme meu. Eu, que nunca me julguei iniciador de nada, contestei a afirmação e ele me disse: "A pornochanchada começa aqui, exatamente neste momento, neste filme, e acontece que o filme foi feito por Ody Fraga".
JS – Qual foi o filme?
Ody – "Vidas Nuas". Filme que, por sinal, fez a fortuna de um ambicioso ex-eletricista de cinema. Estávamos rodando o filme e, quando ele já estava a meio caminho, a produtora faliu. Com isso, "Vidas Nuas" foi para a prateleira e eu para a televisão, onde fiquei dez anos. Certo dia, este ex-eletricista me procurou e disse que queria ser produtor, mas que não tinha condições para tanto. Perguntou se eu não tinha um roteiro, respondi que não, mas que poderia ajudá-lo em qualquer outra coisa. Ele me disse então que havia comprado os negativos daquele filme inacabado, "Vidas Nuas", e queria os direitos autorais. Eu cedi, ele montou o filme como estava, encaixou outras seqüências, lançou-o no mercado e fez de "Vidas Nuas" um sucesso. Ficou milionário.
JS – Como é o nome do ex-eletricista?
Ody – Hoje ele é produtor dos filmes do Walter Hugo Khoury e vai entrar para a história do cinema, queiram ou não queiram. Chama-se Antônio Paulo Galante, mais conhecido como A. P. Galante.
JS – Não lhe parece que a pornochanchada no Brasil é uma espécie de "linha de montagem", ou seja, aperta-se um botão e saem filmes e mais filmes? Não que está havendo um processo de saturação e que isso precisa ser mudado?
Ody – Não há dúvida. A pornochanchada está chegando ao fim da linha. Por vários motivos: primeiro, porque começou a produzir um dinheiro fácil e rápido. Com a rentabilidade fantástica, ela produziu, paralelamente, um benefício, porque trouxe o espectador às salas de exibição de cinema brasileiro. Mas, ao mesmo tempo, ela também tornou-se negativa, uma vez que começou a desmoralizar o próprio cinema brasileiro.
JS – Começou a desandar, então, quando descobriram o filão?
Ody – Exato. Percebeu-se que era fácil ganhar dinheiro e muita gente passou fazer fitinhas rápidas, sem roteiro, sem anda. Reuniam meia dúzia de mulheres nuas em cima de uma cama, mais uns três ou quatro homens e aí dava no que dava.
JS – Houve alguma pornochanchada de bom nível, ou seja, feita com categoria e respeito ao espectador?
Ody – Houve sim. Um exemplo disso é a fita "Ainda Agarro Essa Vizinha", do Pedro Paulo Rovai, com a Adriana Prieto. Outros exemplos: "A Viúva Virgem", do mesmo Rovai, e "Os Paqueras", do Reginaldo Faria. E há um filme meu que considero também nesta linha: "O Sexo Mora ao Lado", uma comédia urbana, com os ingredientes de mercado da época.
JS – Qual o exato momento em que a pornochanchada começa a declinar?
Ody – Como ela teve a sua certidão de nascimento com o advento do Ato Institucional nº 5, ela, identicamente, recebeu o atestado de óbito com a queda do mesmo AI-5. Agora, precisamos fazer uma ressalva: nem todo o filme que tenha o sexo por temática é pornochanchada.
JS – Para o espectador mais esclarecido, essa distinção pode ser fácil. Mas, como fica o espectador comum? Será que ele percebe a diferença?
Ody - Ele está evoluindo, porque saturou da pornochanchada. E é importante: este tipo de cinema acabou trazendo um benefício nesse sentido, porque o espectador comum já não procura a chamada 'linha de montagem'. Ele procura o cinema que lhe mostre o sexo misturado a outros problemas.
JS – E ele está, de fato, indo para outro tipo de filme?
Ody – Está. E uma das provas maiores é o sucesso de "Mulher, Mulher", maior bilheteria de 1979.
JS – E os filmes de Walter Hugo Khoury? Não estariam numa linha de sexo mais intelectualizada?
Ody – O Walter Hugo Khoury, para mim, não é um intelectual: é um bolo sem recheio. É o "barroco do vazio".
JS – Há quem o considere como o "Bergman brasileiro"...
Ody – Ele tem um pecado capital: é não ser o Bergman sueco. Porque, tentar ser o "Bergman brasileiro", como se diz, resultou num péssimo carbono. E tão ruim que quase levou o A. P. Galante à bancarrota.
JS – Dentro de sua filmografia predomina, invariavelmente, o sexo como tema. Você não procurou outra linha de filme?
Ody - Procurei. E, por coincidência, este filme que realizei foi o primeiro grande teste da abertura política. Chama-se “E Agora, José?” e é um filme sobre os direitos humanos, eminentemente político.
JS – É sobre o caso Herzog?
Ody – Não. Sobre o caso Herzog o Aníbal Massaini está produzindo agora um filme. O Meu serviu inclusive de parâmetro para o Massaini, pois, se o “E Agora, José?” passasse na censura, significaria que o do Herzog também seria liberado. Houve, inclusive, uma expectativa muito grande.
JS – E a Censura liberou seu filme?
Ody – Sem cortes. O maior problema agora é o patrulhamento de que estou sendo vítima, tanto de parte da esquerda, quanto da direita. A esquerda me acusa de não haver assumido no filme. Meu propósito, com “E Agora, José?” era fazer um filme exclusivamente sobre direitos humanos. Longe de mim ter o propósito de suscitar uma discussão ou fazer um discurso ideológico.
JS – Você abomina a “obra ideológica”, então?
Ody – Eu sou contra o discurso político-ideológico na obra. Ela tem que ser o que ela é.
JS – E como é a história de “E Agora, José?”
Ody – É a história de dois amigos, ex-colegas de faculdade. Eles se reencontram, bebem, recordam os bons tempos, arranjam duas prostitutas e passam uma noite divertida, no apartamento de um deles. Pela manhã, um deles (o visitante) desaparece e a polícia política bate no apartamento, prendendo o outro, um simples tecnocrata, sem militância alguma na esquerda. O resto da história se relaciona com torturas, morte, desencontros e adultério. É, enfim, um filme sobre os direitos humanos e sobre a liberdade do indivíduo.
JS – A história é bastante atual, já que as torturas predominaram até 1975/1976. Mesmo assim, não teve problemas com a censura?
Ody – Teve. Mas, graças a uma interferência pessoal do ministro Petrônio Portella – na fase de contatos políticos e de projeto de abertura – ela foi liberada totalmente. Sem cortes. Há inclusive um detalhe curioso: foi o último filme que o Portella assistiu, antes de morrer.
JS – E como é que se explica que um jovem dramaturgo, escritor de peças tão herméticas que nem mesmo ele entendia, terminou como um dos reis da pornochanchada no Brasil?
Ody – A pornochanchada não tem nenhum rei.
JS – Muda-se a pergunta, então. Como é que um jovem autor de peças teatrais herméticas encenadas nos palcos da Florianópolis da década de 1950 terminou como um bem-sucedido produtor e diretor de peças de sexo?
Ody – Acho que naquela época a gente era ilhéu até de espírito e eu refletia isso no que escrevia. Refletia crises, problemas espirituais, místicos, existenciais. Hoje eu sou um tranqüilíssimo ateu.
JS – Mas apesar disso se pode notar nos seus filmes atuais o mesmo tipo de indagações.
Ody – Claro, porque isso fica. Veja que no meu último filme, “Palácio de Vênus” – ainda inédito nas telas – eu criei uma série de situações, de questionamentos. Entre elas, incluí uma prostituta beata, santa religiosa. Poderia ter optado por outra caracterização, mas preferi esta.
JS – E tecnicamente, como está o cinema brasileiro?
Ody – O equipamento continua obsoleto e só agora que se está pensando em renová-lo. Por isso, muitas vezes você vai ao cinema e vê um filme brasileiro com som e imagem desencontrados. Outras vezes, você não consegue ouvir nada ou a fotografia é péssima. Outras vezes ainda, a culpa disso tudo é dos péssimos projetores de cinema que nós temos, que são da pior qualidade possível. É preciso lembrar que o cinema moderno é imagem e som e por isso precisa estar acoplado de maneira satisfatória.
JS – Os equipamentos das salas de projeção não ajudam o cinema brasileiro...
Ody – Exato. Se você projetar determinado filme no Ritz e, logo em seguida, projetá-lo no Cecomtur, vai notar uma diferença da noite pro dia.
JS – Por quê?
Ody – Porque o equipamento do Ritz é melhor. O do Cecomtur é lastimável e normalmente “assassina” qualquer bom filme, destruindo todo um trabalho de criação.
JS – Diz-se que no Brasil não há cinema inteligente. Como é que você encara essa afirmação?
Ody – Eu tenho uma outra opinião: acho que não há crítico inteligente no Brasil. E posso citar um exemplo, de um nome muito famoso, muito em moda atualmente: já publicou dois licros sobre cinema e não escreveu nenhum. É um autor entre aspas.
JS – Quem é?
Ody – É o Rubens Ewald Filho. Um crítico americanista. A carteira de identidade dele e dos outros é um acidente sideral: não tem nada a ver com ele. São americanos e caíram por aqui.
JS – Por quê?
Ody – Porque eles analisam e estudam o cinema brasileiro com padrões de cultura, de técnica e arte americanos. Nós não temos nada a ver com isso: temos que criar uma linguagem de cinema nosso.
JS – Você, que trabalhou dez anos em televisão, como encara o nível de qualidade da televisão brasileira? É, de fato, um dos melhores do mundo, como dizem?
Ody – Não é um dos melhores do mundo. É um dos menos mal-cheirosos. O padrão “Globo de qualidade” e uma cloaca é a mesma coisa. Aquilo não é padrão.
JS – E a novela de televisão? Não reflete um avanço técnico e artístico?
Ody – Não. A grande revolução da novela brasileira é uma revolução de texto. Não tem nada a ver com diretor – que é funcionário, capataz que faz marcação para a câmera. Isso é um blefe. Quem fez a revolução da televisão foi o Bráulio Pedroso, o Dias Gomes, o Walter Durst, autores de excelentes textos.
JS – Você vai rodar um filme em Florianópolis. Como será este filme?
Ody – Chama-se “Jeruza do Mar”, com roteiro meu, influenciado por algumas leituras. Sempre tive o desejo e a pretensão de fazer um filme dentro da estrutura do clássico, da tragédia grega. Isso para mim é um desafio antigo e pretendo enfrentá-lo agora com “Jeruza”.
JS – Estaria distante da sua filmografia anterior?
Ody – Sim, pois é a primeira vez que eu vou derivar para os meus temas mais pessoais. Pretendo voltar – agora sem hermetismos – para aquela temática do tempo em que eu escrevia teatro.
JS – E por que Florianópolis como cenário do filme?
Ody – Eu poderia fazer o “Jeruza” de uma forma muito mais econômica, próximo da minha base de trabalho, que é São Paulo. Mas preferi a ilha por duas razões: uma, sentimental, porque eu queria rever Florianópolis e não tinha tempo de vir. Resolvi trabalhar aqui. Outra, porque eu já tenho um certo status profissional que me permite dizer ao produtor: “Quero fazer este filme em tal lugar”. Ele não poderá recusar. Há, ainda, uma terceira razão: a ilha tem uma certa identidade visual com o trabalho que eu pretendo.
JS – Já dá para viver de cinema no Brasil?
Ody – Todos os produtores que estão fazendo cinema no Brasil vivem do cinema.
JS – E por que tantos apelam para a Embrafilme?
Ody – A gente não deve esquecer a origem das coisas. A Embrafilme também é um produto da revolução de 1964.
JS – Quer dizer que o cinema brasileiro tem de agradecer ao AI-5, então?
Ody – Não tem que agradecer nada. Ele tem que temer, sempre. Gosto de lembrar De Gaulle: nós não levamos uma cacetada estatizante de uma vez só, porque este aqui não é um país sério. Porque o problema da Embrafilme é o seguinte: ela delimita, cerceia.
JS – Mas tem gente que vive dos financiamentos da Embrafilme. E faz bons filmes.
Ody – Tem. Mas eu sempre me recusei a participar desse jogo, porque a Embrafilme é um rio que vai desembocar em algum lugar. Vai desembocar, em longo prazo, na estatização do cinema. Não acredito neste pessoal dito de esquerda, que aceita o jogo da Embrafilme e faz o chamado filme engajado. Acho impossível você fazer um filme revolucionário com apoio oficial. Esta é uma esquerda profissional, que está aí para ser comprada.
JS – E o Nelson Pereira dos Santos? “Amuleto de Ogum” é um filme antológico?
Ody – Eu acho o “Amuleto” uma besteira. E digo mais: não entendo como é que no Brasil um sujeito consegue, ao mesmo tempo, ser marxista e cristão. Isso é uma imbecilidade, uma pizza que não dá mistura: não liga a mussarela com a massa. “Amuleto de Ogum” é isso aí.
JS – Para você, quais seriam os diretores que estariam fazendo uma obra mais significativa no cinema brasileiro?
Ody – O Joaquim Pedro de Andrade está sendo um bom cineasta; o Cacá Diegues, idem (principalmente seu filme “Bye Bye Brasil”).
JS – Você acha que o cinema brasileiro tem condições, daqui para frente, de competir com o cinema estrangeiro?
Ody – Nós estamos conquistando o mercado na briga, no braço a braço. Mas é uma luta difícil.
Um comentário:
Este é o Ody que eu conheci na Rua do Triumpho. Ele faz falta. Sua inteligencia e visão clara do cinema, do mundo e das pessoas esta demonstrada nessa entrevista. Parabens.
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