A matéria que reproduzimos hoje foi publicada na edição número 67 do Jornal da Semana, tablóide que circulou em Florianópolis entre 1978 e 1980. Trata de “O Preço da Ilusão”, o primeiro longa-metragem rodado na capital catarinense, em 1957, sob a responsabilidade do Grupo Sul.
O material foi inteiramente digitalizado (inclusive as fotos) pelo autor deste blog, que conserva os originais do jornal (e algumas imagens) em seus arquivos.
O material foi inteiramente digitalizado (inclusive as fotos) pelo autor deste blog, que conserva os originais do jornal (e algumas imagens) em seus arquivos.
Imagine-se viver numa cidade como Florianópolis, há 30 anos, com uma população ultraconservadora e provinciana – não ultrapassando a casa dos 80 mil habitantes. Naquele tempo ainda havia carrinhos-de-cavalo, os carrões dos playboys, o Miramar, o porto e uns poucos arranha-céus. As moças ainda faziam o 'footing' em torno da Praça 15 e usavam vestidos que lhes escondiam os joelhos. Rapazes e senhores envergavam seus ternos de linho, usados de preferência com uma camisa branca e com uma gravata preta, fininha – capazes de causas 'ohs' de admiração nas moças. A cidade era pacata e, até, recatada: parecia parada no tempo, avessa a mudanças.
Esta seria, é claro, a primeira impressão de algum incauto observador que enxergasse apenas a superfície da cidade. Sim, pois nem tudo era pacato e nem tudo cheirava a atraso e monotonia: havia o Grupo Sul e uma inquietação anormal. Havia o Sul, um grupo que, em fins da década de 1940, empurrara o ranço parnasiano da Ilha para o purgatório, trazendo, para a antiga “Exiliópolis” do século 19, um movimento que transformara a arte e a cultura brasileira no princípio do século (20): o modernismo.
Para aquela pacata e provinciana Florianópolis, o florescimento de inquietações incomuns representava, sem dúvida, uma ameaça às estruturas culturais convencionais, conservadoras e distantes da realidade. Temia-se o Grupo Sul como se teme o vento Sul, que sempre traz frio, chuva e certa insegurança. Daquele grupo de rapazes e moças, inquietos e renovadores, nasceria todo um trabalho em prol da cultura de Santa Catarina, até então estagnada e alienante.
Um dos grandes produtos do Grupo Sul foi a revista Sul, de literatura e debate, editada ininterruptamente durante dez anos e responsável pela difusão da cultura catarinense em todo o mundo. Dos escritores que iniciaram publicando trabalhos na Sul muitos adquiriram projeção nacional e internacional. É o caso de Salim Miguel, Silveira de Souza, Eglê Malheiros, Aníbal Nunes Pires, Glauco Rodrigues Corrêa, Hugo Mund Jr., Walmor Cardoso da Silva e outros. Rompia-se, de fato, com uma literatura arcaica, provinciana e conservadora e partia-se para uma literatura participante, profundamente vinculada à vida, ao real.
CINE-CLUBE
A revista Sul constituiu apenas uma parte do trabalho do grupo. Paralelamente, aqueles rapazes e moças iniciavam outra atividade: o teatro, que revelaria nomes como Ody Fraga e Silva que, mais tarde, viria a ser um bem-sucedido diretor de cinema brasileiro. Também no cinema poderia ser citado Marcos Farias, integrante do grupo.
Nas artes plásticas – outra atividade constante do Grupo Sul – seriam revelados nomes como os de Hassis, Ernesto Meyer Filho, Dimas Rosa, Aldo Nunes e Hugo Mund Jr. O grupo se fortalecia, inquietava a cidade. Ao mesmo tempo, criava-se o primeiro museu de arte moderna do país e redescobria-se Martinho de Haro.
Ainda em fins da década de 1940 surgiria em Florianópolis o primeiro cine-clube de sua história, projetando na época os maiores filmes do cinema mundial. Trazia-se para a pacata Ilha realizações de diretores que, à época, revolucionavam a sétima arte, introduzindo novas formas de pensar a realidade. Assim, os habitantes da cidade, acostumados com a ingenuidade das produções da Atlântida e de Hollywood, começaram pouco a pouco a tomar conhecimento de nomes como Vittorio de Sica, Orson Welles, Alberto Lattuada e outros.
Na revista Sul iniciavam-se discussões sobre a função do cinema e do cine-clube. No Rio de Janeiro, Nelson Pereira dos Santos acabava de rodar “Rio 40 Graus” – um marco na história cinematográfica nacional, já que representa o início de uma nova fase para a Sétima Arte no Brasil: o Cinema Novo. O filme partiu de uma idéia de Arnaldo Farias de fixar os mais variados aspectos da cidade, tendo como ligação alguns pequenos vendedores de amendoim. Nelson Pereira dos Santos formou uma espécie de cooperativa, colocando um novo tipo de produção, tanto em método como em proposta.
O PREÇO DA ILUSÃO
A proposta do cinema novo atingiu Santa Catarina e, diretamente, o Grupo Sul. Repentinamente, surgiu a idéia de realização de um filme, aqui, na Ilha, como resposta ao “Rio 40 Graus” de Nelson Pereira dos Santos, mostrando identicamente, alguns aspectos da cidade. O grupo discutiu e partiu para a prática.
Dizia Salim Miguel à revista Panorama, do Paraná, em 1958: "A idéia de se abandonar a teorização para a prática vinha de longe. Chega um dia que as salas escuras não bastam. Há necessidade da pessoa que se interessa por cinema se experimentar, fazer também suas tentativas. Debates, discussões acaloradas em torno desta ou daquela escola, análise de filmes, tudo conduzia os mais inquietos, canalizava aquele esforço e aquela pesquisa para um determinado fim".
O grupo se organizou e pediu o apoio de intelectuais experientes na área, como Nilton Nascimento e E. M. Santos, vindos respectivamente de Porto Alegre e São Paulo. Com a ajuda financeira de pessoas da cidade e com um crédito obtido através do Banco do Estado de São Paulo, constituíram a Equipe Cinematográfica Alberto Cavalcanti, da Sul Cine-Produções, e lançaram-se à aventura – “ousadia”, no dizer de Eglê Malheiros – de fazer um filme em Florianópolis, em 1957. E fizeram "O Preço da Ilusão", uma idéia ambiciosa, segundo Eglê, mas que representou o esforço do Grupo Sul para acompanhar os passos iniciais daquele movimento que revolucionaria o cinema brasileiro.
CRÔNICA DE UMA CIDADE
"Contando apenas com dois papéis centrais", dizia Salim Miguel à mesma revista Panorama em 1958, "e cerca de 80 pessoas com participação de importância relativa, além de centenas de figurantes, pode-se dizer que os verdadeiros “artistas do filme” são a cidade de Florianópolis e a ponte Hercílio Luz. Praias, ruas, bares, becos, recantos pitorescos, praças e jardins, mercado, e em especial a ponte, atravessam o filme de ponta a ponta, dão-lhe uma fisionomia própria, particular, característica. Ali, então, uma humanidade como todas, com seus sonhos e desilusões, esperanças e desventuras, se locomove. E a câmera procura captar com precisão tudo aquilo".
Esta seria uma definição aproximada do que pretende ser "O Preço da Ilusão": a crônica, o painel de uma cidade, através da construção de duas histórias em contraponto. Com 70% de exteriores – proposta, aliás, intencional – "O Preço da Ilusão" pretendeu ser uma aula prática do que os rapazes e moças da Sul aprenderam com o neo-realismo italiano e com o cine-novismo brasileiro, então emergente.
Nesta reportagem, o Jornal da Semana reconstitui para a Florianópolis de hoje – urbanizada e a caminho da explosão – os caminhos percorridos por aqueles jovens que, na década de 1950, ousaram pôr em dúvida o marasmo e o provincianismo, construindo, com garra, o primeiro filme da história de Santa Catarina.
[Primeira retranca da matéria publicada no Jornal de Semana, edição número 67, 10 a 17 de maio de 1980].
Esta seria, é claro, a primeira impressão de algum incauto observador que enxergasse apenas a superfície da cidade. Sim, pois nem tudo era pacato e nem tudo cheirava a atraso e monotonia: havia o Grupo Sul e uma inquietação anormal. Havia o Sul, um grupo que, em fins da década de 1940, empurrara o ranço parnasiano da Ilha para o purgatório, trazendo, para a antiga “Exiliópolis” do século 19, um movimento que transformara a arte e a cultura brasileira no princípio do século (20): o modernismo.
Para aquela pacata e provinciana Florianópolis, o florescimento de inquietações incomuns representava, sem dúvida, uma ameaça às estruturas culturais convencionais, conservadoras e distantes da realidade. Temia-se o Grupo Sul como se teme o vento Sul, que sempre traz frio, chuva e certa insegurança. Daquele grupo de rapazes e moças, inquietos e renovadores, nasceria todo um trabalho em prol da cultura de Santa Catarina, até então estagnada e alienante.
Um dos grandes produtos do Grupo Sul foi a revista Sul, de literatura e debate, editada ininterruptamente durante dez anos e responsável pela difusão da cultura catarinense em todo o mundo. Dos escritores que iniciaram publicando trabalhos na Sul muitos adquiriram projeção nacional e internacional. É o caso de Salim Miguel, Silveira de Souza, Eglê Malheiros, Aníbal Nunes Pires, Glauco Rodrigues Corrêa, Hugo Mund Jr., Walmor Cardoso da Silva e outros. Rompia-se, de fato, com uma literatura arcaica, provinciana e conservadora e partia-se para uma literatura participante, profundamente vinculada à vida, ao real.
CINE-CLUBE
A revista Sul constituiu apenas uma parte do trabalho do grupo. Paralelamente, aqueles rapazes e moças iniciavam outra atividade: o teatro, que revelaria nomes como Ody Fraga e Silva que, mais tarde, viria a ser um bem-sucedido diretor de cinema brasileiro. Também no cinema poderia ser citado Marcos Farias, integrante do grupo.
Nas artes plásticas – outra atividade constante do Grupo Sul – seriam revelados nomes como os de Hassis, Ernesto Meyer Filho, Dimas Rosa, Aldo Nunes e Hugo Mund Jr. O grupo se fortalecia, inquietava a cidade. Ao mesmo tempo, criava-se o primeiro museu de arte moderna do país e redescobria-se Martinho de Haro.
Ainda em fins da década de 1940 surgiria em Florianópolis o primeiro cine-clube de sua história, projetando na época os maiores filmes do cinema mundial. Trazia-se para a pacata Ilha realizações de diretores que, à época, revolucionavam a sétima arte, introduzindo novas formas de pensar a realidade. Assim, os habitantes da cidade, acostumados com a ingenuidade das produções da Atlântida e de Hollywood, começaram pouco a pouco a tomar conhecimento de nomes como Vittorio de Sica, Orson Welles, Alberto Lattuada e outros.
Na revista Sul iniciavam-se discussões sobre a função do cinema e do cine-clube. No Rio de Janeiro, Nelson Pereira dos Santos acabava de rodar “Rio 40 Graus” – um marco na história cinematográfica nacional, já que representa o início de uma nova fase para a Sétima Arte no Brasil: o Cinema Novo. O filme partiu de uma idéia de Arnaldo Farias de fixar os mais variados aspectos da cidade, tendo como ligação alguns pequenos vendedores de amendoim. Nelson Pereira dos Santos formou uma espécie de cooperativa, colocando um novo tipo de produção, tanto em método como em proposta.
O PREÇO DA ILUSÃO
A proposta do cinema novo atingiu Santa Catarina e, diretamente, o Grupo Sul. Repentinamente, surgiu a idéia de realização de um filme, aqui, na Ilha, como resposta ao “Rio 40 Graus” de Nelson Pereira dos Santos, mostrando identicamente, alguns aspectos da cidade. O grupo discutiu e partiu para a prática.
Dizia Salim Miguel à revista Panorama, do Paraná, em 1958: "A idéia de se abandonar a teorização para a prática vinha de longe. Chega um dia que as salas escuras não bastam. Há necessidade da pessoa que se interessa por cinema se experimentar, fazer também suas tentativas. Debates, discussões acaloradas em torno desta ou daquela escola, análise de filmes, tudo conduzia os mais inquietos, canalizava aquele esforço e aquela pesquisa para um determinado fim".
O grupo se organizou e pediu o apoio de intelectuais experientes na área, como Nilton Nascimento e E. M. Santos, vindos respectivamente de Porto Alegre e São Paulo. Com a ajuda financeira de pessoas da cidade e com um crédito obtido através do Banco do Estado de São Paulo, constituíram a Equipe Cinematográfica Alberto Cavalcanti, da Sul Cine-Produções, e lançaram-se à aventura – “ousadia”, no dizer de Eglê Malheiros – de fazer um filme em Florianópolis, em 1957. E fizeram "O Preço da Ilusão", uma idéia ambiciosa, segundo Eglê, mas que representou o esforço do Grupo Sul para acompanhar os passos iniciais daquele movimento que revolucionaria o cinema brasileiro.
CRÔNICA DE UMA CIDADE
"Contando apenas com dois papéis centrais", dizia Salim Miguel à mesma revista Panorama em 1958, "e cerca de 80 pessoas com participação de importância relativa, além de centenas de figurantes, pode-se dizer que os verdadeiros “artistas do filme” são a cidade de Florianópolis e a ponte Hercílio Luz. Praias, ruas, bares, becos, recantos pitorescos, praças e jardins, mercado, e em especial a ponte, atravessam o filme de ponta a ponta, dão-lhe uma fisionomia própria, particular, característica. Ali, então, uma humanidade como todas, com seus sonhos e desilusões, esperanças e desventuras, se locomove. E a câmera procura captar com precisão tudo aquilo".
Esta seria uma definição aproximada do que pretende ser "O Preço da Ilusão": a crônica, o painel de uma cidade, através da construção de duas histórias em contraponto. Com 70% de exteriores – proposta, aliás, intencional – "O Preço da Ilusão" pretendeu ser uma aula prática do que os rapazes e moças da Sul aprenderam com o neo-realismo italiano e com o cine-novismo brasileiro, então emergente.
Nesta reportagem, o Jornal da Semana reconstitui para a Florianópolis de hoje – urbanizada e a caminho da explosão – os caminhos percorridos por aqueles jovens que, na década de 1950, ousaram pôr em dúvida o marasmo e o provincianismo, construindo, com garra, o primeiro filme da história de Santa Catarina.
[Primeira retranca da matéria publicada no Jornal de Semana, edição número 67, 10 a 17 de maio de 1980].
3 comentários:
Caro.
Parabéns pelo bom trabalho, ótimo blog.
Trabalho com pesquisa, começo a estudar a história do cinema catarinense.
Grande Abraço.
Juliana.
Ótimo trabalho parabéns. Eu conheci essa ilha maravilhosa no inicio dos anos 60, gosto de saber tudo sobre ela. No inicio dos anos 70, vim fazer parte dos moradores que nela vivem. Na realidade gosto da ilha de todos os jeitos, a evolução chegou e eu tive que acompanhar. Mas jamais vou apagar pontos que ficaram fotografados em minha memória. E o mais forte de todos, foi as águas do mar, que chegavam até o Mira Mar e Mercado Publico. Espia, espia menino, to de zóio e zorelha em tudo, pois eu escrevo poesias e contos sobre esse pedaço de terra dentro do mar. E no romance que to escrevendo vou contar tudo sobre o dia que conheci essa terra maravilhosa. Hoje já posso dizer, que me sinto uma manézinha dessa ilha mágica abençoada por Deus.
Preciso realmente demais de algumas informações atuais sobre elementos do elenco do filme ... pode me ajudar ?? ejcj1980@msn.com
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