06 abril 2007

Rua Felipe Schmidt – O coração da cidade


Na primeira foto, obras de alargamento da rua, na década de 1930. Na segunda imagem, o mesmo cenário em registro feito recentemente


Texto de Carlos Damião
Publicado em A Notícia (AN Capital), outubro de 2002


“A cidade passava por ali”. A frase do jornalista Aldírio Simões, colunista do ANcapital, define com perfeição o significado da Rua Felipe Schmidt para Florianópolis, pelo menos até os anos 80, quando a cidade ainda respirava o clima de província e não havia sido inteiramente invadida. Passar por ali significava saber das últimas, conferir se alguém morreu, palpitar sobre quem ganharia a eleição, falar mal da vida alheia.
É importante separar a rua em três partes: a primeira quadra, entre a Praça 15 de Novembro e a Trajano, a segunda, entre esta última e a Jerônimo Coelho, e a terceira, da Jerônimo Coelho até o final, nas proximidades da Ponte Hercílio Luz, onde havia o antigo bairro do Estreito (insular). São três ruas diferentes e foi sempre assim, desde o século 19, quando Florianópolis começou a crescer no sentido Oeste. Embora a Conselheiro Mafra, por causa do comércio, tenha sido a mais importante da capital até o início do século 20, mais tarde a Felipe Schmidt acabou se transformando na principal da cidade. Não só principal, mas também a mais charmosa, elegante, freqüentada e observada.
Sua origem remonta ao século 18, embora tivesse pequena extensão, indo até as imediações da atual Praça Pio 12, onde está hoje o estacionamento subterrâneo, ao lado das Lojas Americanas. O primeiro nome registrado, conforme o historiador Oswaldo Rodrigues Cabral, foi “Rua da Fonte do Ramos”, numa referência à fonte de água que brotava no local, depois chamado de Fonte da Carioca e Largo Fagundes.
Mais tarde, por causa dos moinhos de beneficiamento de arroz que os açorianos mantinham na região, foi denominada Rua dos Moinhos de Vento. A esse nome seguiu-se o de Rua Bela (1817), Rua Bela do Senado (1865), Rua do Senado e Rua da República (1889). Felipe Schmidt seria uma homenagem ao governador catarinense que, na década de 10 do século 20 conseguiu resolver “a velha questão de limites com o Paraná” (segundo Cabral).
Até a década de 1920, a rua conservava seus traços arquitetônicos, tipicamente coloniais, segundo a arquiteta Eliane Veras da Veiga, em seu livro “Florianópolis: Memória Urbana”. Em 1926, foi inaugurada a Ponte Hercílio Luz, que daria um novo perfil urbano para a capital, tirando a Ilha de Santa Catarina do isolamento em que se encontrava até aquele ano. A Felipe Schmidt passou a ser, então, a principal via de acesso do centro da cidade até a ponte, uma vez que o principal obstáculo – o cemitério municipal – havia sido removido um ano antes. A cidade crescia, aumentava o número de automóveis e era preciso prepará-la para os anos seguintes. Por causa disso, o então prefeito Mauro Ramos decidiu pelo alargamento da via, que até então mantinha as características originais, equivalentes às ruas Tiradentes e Fernando Machado de hoje.
O registro do pesquisador Adolfo Nicolich, em seu livro “Ruas de Florianópolis”, aponta o ano de 1928 como o do início das obras que poriam abaixo uma quantidade não identificada de casas térreas e sobrados típicos da arquitetura portuguesa e açoriana. “Vários cortes alteraram seu perfil”, registra Eliane Veras da Veiga. “Foi largada por volta da década de 30, o que provocou uma modernização edilícia, afastando-a de sua velha aparência colonial. Os prédios mais antigos tiveram de ser demolidos, ao exigir-se um recuo; outros tiveram suas fachadas reformadas, adotando uma decoração eclética. Alguns especialmente construídos por grandes e tradicionais firmas comerciais da cidade, passaram a adotar linhas similares, caracterizando visual próprio da empresa. Tais prédios podem ser observados ainda hoje”.
A segunda grande transformação da rua aconteceu a partir de 1976, quando foi concluído o calçadão, uma decisão do então prefeito Esperidião Amin, inspirada no modelo curitibano. Amin previu a explosão populacional da cidade e, após estudos técnicos, determinou o fim do reinado do automóvel, no trecho entre a Praça 15 de Novembro e a Rua Álvaro de Carvalho. Até porque, àquela altura, com a inauguração da segunda ponte – a Colombo Salles –, o uso da Felipe Schmidt como via de acesso à Ponte Hercílio Luz perdera importância. Dois anos antes, eram comuns os engarrafamentos que iam justamente da praça até a ponte, por causa do volume de tráfego.

Rua Felipe Schmidt – Parte 2

“No Senadinho ou na figueira se decidem os destinos do mundo. E o Senador vitalício, rodeado de sua corte, dá audiências e pontifica”. [Salim Miguel, na crônica “Não tem mais Ninguém”].

Lendas da Felipe Schmidt

A Felipe Schmidt, como centro de fofocas e falatório, foi sempre palco de histórias, umas bem, outras mal contadas. Entre as lendas do lugar, resgatamos três:

O “dono” dos carros

Aderbal Ramos da Silva era governador do Estado (1946-1950) e, apesar da pompa do carro, às vezes deixava seu carro estacionado nas imediações do Senadinho. Adolfo, guardador de carros – o ‘flanelinha’ da época – percebeu quando aquele homem severo aproximava-se do veículo, com as chaves na mão, pronto para abri-lo. “Um momento”, gritou Adolfo. O governador virou-se e viu o pobre coitado ao seu lado, em atitude intimidatória. “O que foi?”. O guardador não se fez de rogado e lascou: “Este carro é meu”. Aderbal entrou no jogo. “Ah, é seu? Quer vender?”. Ao que Adolfo assentiu positivamente com a cabeça. “Quanto é que você quer por ele?”. O rapaz estipulou um preço, equivalente a R$ 1 na moeda de hoje. Aderbal pôs a mão no bolso, catou umas moedas e “comprou” a liberdade do seu próprio carro.
O guardador, que não batia muito bem da bola, vivia se atritando com os donos dos carros e também com um guarda de trânsito, Marrequinha, outra figura folclórica da região central. Era o guarda aparecer para multar os automóveis estacionados irregularmente que Adolfo punha-se a discutir, autonomeando-se proprietário dos veículos. As discussões entre os dois eram célebres e chamavam a atenção de todos os que freqüentavam o Senadinho.

A orelha de Cesar Cals

O episódio da Novembrada (30 de novembro de 1979) começou na Praça XV de Novembro, em frente ao Palácio Rosado (depois Cruz e Sousa) e terminou na Felipe Schmidt, nas imediações do Ponto Chic. A assessoria do presidente João Figueiredo, que errou em tudo naquele dia, previu uma descida do general à praça, onde inauguraria uma placa em homenagem a Floriano Peixoto, seguindo depois para o Senadinho, onde a comitiva provaria o tradicional cafezinho e entraria para a história da instituição. Com a confusão armada na praça, populares destruíram a placa que lembrava o marechal que mandou matar mais de 100 desterrenses em 1893. A fúria prosseguiu pelo calçadão, onde a segurança fazia de tudo para deter os rebeldes, protegendo Figueiredo e seu staff. Entre os acompanhantes do general estava o ministro das Comunicações, Cesar Cals. Atingido por um tapaço na orelha, supostamente desferido por um motorista de táxi, Cals foi ao chão. Segundo a lenda, foi o único do grupo presidencial que sofreu alguma agressão física.

As meninas do Coração

A Felipe Schmidt foi, nos anos 40 e 50, a rua do “footing”, o tradicional passeio dominical das moças solteiras, que faziam o trajeto entre a Praça XV de Novembro e a esquina com a Rua Trajano várias vezes. “Elas vinham e voltavam”, lembra Aldírio Simões, “despertando idéias românticas e sensuais nos rapazes que circulavam durante as tardes, depois das vesperais dos cinemas (São José e Ritz)”.
Nos anos 60 e 70, o “footing” já não existia e a aglomeração masculina nas esquinas da Felipe Schmidt se dava por outra razão, especialmente nos dias de vento sul: assistir a passagem das estudantes do Coração de Jesus, até então um colégio exclusivamente feminino. Elas usavam saias beges plissadas que, ao sabor do vento intruso, às vezes subiam à cabeça, causando furor generalizado entre os rapazes.
Por causa do “footing” e das meninas do Coração a Felipe Schmidt foi considerada, durante muitos anos, a rua “da paquera”, num tempo em que não havia os shoppings, nem a Avenida Beira-Mar e pouca gente tinha carro para freqüentar as praias de Coqueiros, muito menos Canasvieiras.

Rua Felipe Schmidt - Parte 3

Figuraços da Felipe

O cronista da cidade, Beto Stodieck [esquerda], e o senador Alcides Ferreira, na esquina da Felipe Schmidt com a Rua Deodoro. Imagina-se que eles tinham acabado de sair do Cartório Luz, onde pediram a bênção habitual à Ciloca, filha do ex-governador Hercílio Luz. A obra que aparece à direita é a do ARS

O Senador – Alcides Hermógenes Vieira, elegante, impecável em seus ternos de linho branco, foi o personagem mais importante da história do Ponto Chic, ainda que pelo café tenham passado presidentes e candidatos a presidente da República. Conhecido como “Senador”, funcionário público, gozador emérito, entrou para a galeria dos tipos inesquecíveis da Rua Felipe Schmidt e adjacências pela irreverência com que abordava os mais diversos temas. Entre seus companheiros prediletos dos últimos anos estavam o jornalista José Hamilton Martinelli, Hercília Catarina da Luz (filha de Hercílio Luz e dona do cartório Luz), Cláudio Morais, entre outros. Com Martinelli (Martina) difundiu algumas das melhores histórias do folclore ilhéu.

Lurdes da Loteria – “Vai um bilhete da Federal, engenheiro agrônomo?”. No outro dia, o mesmo personagem abordado poderia ser médico, deputado, jornalista, qualquer coisa que viesse à cabeça de Lurdes da Loteria, uma personagem inesquecível da Rua Felipe Schmidt, ao longo de mais de 20 anos. Sempre bem vestida, séria, muitas vezes com uma renda prendendo o cabelo – o que lhe dava a aparência de uma evangélica ortodoxa –, Lurdes vendeu seus bilhetes para anônimos passantes, políticos, empresários, sem que se saiba se alguém, algum dia, conseguiu abiscoitar um “grande prêmio”. A vendedora morreu vítima do incêndio de sua casa de madeira.

O homem do Globo – Nos anos 60 e 70, outro figuraço que circulava pela Felipe Schmidt, sempre vestido de macacão azul, cigarro no canto da boca, era Ademar, o “homem do Globo”. Seu grito (“O Glooobôôô!!!”) era inteiramente integrado à paisagem humana do lugar, num tempo em que a leitura do jornal carioca era considerada fundamental para a atualização dos ilhéus, fato que justificava por inteiro a existência de um jornaleiro exclusivo.


Felipe Schmidt – Curiosidades

· A Igreja de São Francisco, na esquina com a Rua Deodoro, é o prédio mais antigo da Rua Felipe Schmidt, inaugurado em 1815. Nos fundos da igreja, ficava o cemitério da irmandade que administrava o templo católico. Desativado, o terreno foi adquirido pelo político Aderbal Ramos da Silva, que construiu em seu lugar o Centro Comercial ARS. (*)

· O Lux Hotel foi construído por volta de 1945, constituindo-se em um dos mais importantes estabelecimentos do gênero em Florianópolis, abrigando políticos e outras personalidades que visitavam a capital. Em seu térreo instalou-se o café Ponto Chic, cujo proprietário mantinha o Café Quidoca, num sobrado ao lado.

· Em frente ao Lux, havia a Confeitaria do Chiquinho, cujo prédio durante muitos anos abrigou a Lojas Arapuã e foi restaurado recentemente pela Livrarias Catarinense. O Chiquinho era um dos pontos de encontro mais imponentes de Florianópolis, famoso pela qualidade de seus quitutes.

· Próximo ao Largo Fagundes, hoje Praça Pio XII, havia uma casa noturna chamada Hemorragia, onde muitos homens dos anos 50 faziam suas “despedidas de solteiro”, naturalmente que muito bem acompanhados pelas meninas da boate.

· Um pouco acima, próximo à esquina com a Rua Bento Gonçalves, funcionou durante alguns anos a Boate Paineiras, que reunia a juventude dos anos 70.

· Entre os bares, destacavam-se o Alvorada, reduto da boêmia que existiu até a década de 70, e o Nipon, uma pastelaria que oferecia a antológica “cachamel”, uma caipirinha de mel servida em copos do tipo “martelinho”.

· O Café Nacional, também na primeira quadra, era conhecido como o “café dos políticos” nos anos 50.

· Duas emissoras de rádio funcionaram durante anos na Rua Felipe Schmidt: a Diário da Manhã, no edifício Comasa, e a Santa Catarina, no edifício Zahia.

· Quando morria alguém conhecido, os amigos pregavam um aviso na parede de mármore do Ponto Chic. A tradição se manteve até poucos anos.

· No final da Rua Felipe Schmidt, que era a saída da cidade, funcionou durante décadas um dos primeiros postos de gasolina da cidade, ao lado do mais tradicional restaurante de Florianópolis, o Lindacap, destruído por um incêndio há dois anos e reconstruído há poucos meses.

· A Livraria Record, existente na esquina com a Trajano, é o único estabelecimento da rua que mantém sua atividade original. Chamava-se Livraria Central, na década de 30, quando houve o alargamento e era de propriedade de Alberto Entres.

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(*) Aqui há um equívoco. Na verdade, o cemitério foi desativado no século 19. Quando Aderbal decidiu construir o ARS, foram demolidos os casarões que existiam nas ruas Felipe Schmidt, Jerônimo Coelho, Deodoro e Conselheiro Mafra. Alguns desses imóveis eram de propriedade da Hoepcke.

10 março 2007

Meditações sobre a cidade

Por Abelardo Souza (*)

Para quem, através de leituras, fotografias e, mesmo, lembranças (hoje, em raros casos), se detém na imagem de Florianópolis da última década do século passado até meados dos anos cinqüenta deste, há de admirar-se e até de espantar-se pelo tanto que cresceu esta cidade, se comparado aquele período com o que se lhe tem seguido até hoje, mais precisamente a partir dos anos sessenta.
As mutações por que passam os lugares onde nascemos ou deitamos raízes e nos quais nos deixamos estar, por princípios avitos de acomodação, são semelhantes, mutatis mutandis, às mutações da moda. Quase não as percebemos e nos parecem corriqueiras no seu discreto passar e no seu constante evolver. Mas, se as comparamos com imagens do passado, muita vez não tão longínquas (fotografias e filmes, principalmente), o espanto é grande: "Ora, veja isto aqui! amigo: em 1945, o Estreito parecia uma cidadezinha do far-west americano. Em 1940, não possuía nenhuma rua calçada. - E esta aqui: em 1953, não havia nem sombra de Estação Rodoviária junto à Maternidade. A avenida Mauro Ramos nem era calçada. - E essas elegantes aqui no "12 de Agosto" de 1960. Coisa horrorosa! Dizer que isto já foi moda! Santo Deus! - Olha aqui os calções dos jogadores das seleções de futebol na Copa da Suécia, e 58. Parecem mais balões do que calções"...
Não é assim mesmo, caro leitor? Pois, sabiam os mais moços que, há uns trinta e oito anos, por volta de 1940 (será tanto tempo? Para mim, parece que foi ontem), este lugar, que já foi Mei-en-bipe, Ilha dos Patos, Desterro e, agora, é Florianópolis, ainda era o paraíso da pacatez e da pasmaceira. Tenha o prezado leitor presente o hoje e o confronte com estas lembranças do ontem, que eu conheci.
Em tardes ensolaradas de primavera, descia-se a Rua Esteves Júnior, cheia de casarões, chácaras e outras belezas. Um ar de modorra ali pairava. Um silêncio benfazejo, assustado aqui e ali pelo canto dos pássaros e pelos assobios do vento nordeste, que se encanava por ali, vindo da Praia de Fora. Atravessava-se calmamente a Avenida Rio Branco sem calçamento, a única via que tinha o topete de cortar a Esteves Júnior. Automóveis? Se você visse algum por ali, ganharia um prêmio. Deserto também de gente. Um ou outro gato pingado, como a gente, perdido naqueles dois mundos de caminho.
Se, chegado ao Jardim do Katcips (bem que poderia ter esse nome), você dobrasse à direita, lá ia pela Bocaiúva a fora ("Praia de Fora faceira; berço da aristocracia"). Sempre sobre o chão de terra, você alcançava a Agronômica, a Penitenciária, a Trindade... Se dobrasse à esquerda, entrava na bucólica Rua Almirante Lamego, antiga de Sant'Ana, também com leito de terra. No fim desta, as cercanias da Praia do Müller eram quase uma floresta. Ali podia esconder-se até o crime. Foi o que ocorreu, pouco antes de 1940, com uma pobre mulher, que teve o seu corpo barbaramente esfaqueado, nunca se soube por quem. O ambiente deserto fora propício ao crime perfeito.
A Rua Presidente Coutinho, também sem calçamento, era praticamente mato só. Quem se lembra da "Capitoa", pobre mulher, mas rica reprodutora de crianças de todas as cores, que a seguiam como um batalhão pelas ruas da cidade a guerrear a fome com as armas da esmola... O batalhão da miséria era alvo predileto da chacota popular. Ainda hoje se ri dos desgraçados... Mas, eu falava na rua Presidente Coutinho. Pois, a Capitoa tinha ali o seu barraco. Quase na esquina desta com a Rua Nereu Ramos.
Um dos lugares mais solitários era a Praça Getúlio Vargas. Hoje, aliás, ainda conserva um toque de soledade. No tocante a gente, bem entendido, porque por automóvel o seu jardim se vê bolinado por todos os lados. O Largo Fagundes (feliz e finalmente, restituíram-lhe o antigo nome) parecia, com raras exceções, a praça da Enseada do Brito. A Felipe Schmidt acabava, como rua, no atual prédio da família Amin Helou. A Rua Hoepcke, hoje calçada, era a maior perambeira que já se viu nesta cidade. Os que a tinham de subir ou descer bem podiam receber a medalha de alpinistas. A estrada do Saco dos Limões empatava com as de desenho animado. O Campo do Manejo (Largo General Osório), talvez há mais de um século com a mesma área e casario, ainda teria de esperar quinze anos para dar lugar ao atual Instituto Estadual de Educação. Por quase todo esse tempo, viveu cercado - ninguém sabe a troco de quê - por alta parede de tábuas. Sobre esse local, permitam-me contar-lhes um fato pitoresco: quando o presidente Vargas aqui esteve a inaugurar o Grupo Escolar do Saco dos Limões, o interventor Nereu Ramos o levou a visitar aquela área, onde já se visava construir o novo Instituto de Educação. Ali chegando a comitiva, o presidente viu alguns garotos a disputar uma "pelada". Amigo das crianças, chamou os garotos e lhes disse mais ou menos isto: "O Doutor Nereu me disse que vai mandar construir aqui uma grande escola e para isso vai ter de cercar todo este largo. Como farão vocês, então, para jogar o seu futebol?". Um dos garotos não titubeou: "Nós pulamos a cerca".
Pois, meus amigos, tudo isto e mais alguma coisa que o espaço não permite arrolar, virou em tão pouco tempo um passado que parece século. No entanto, pouco foi o tempo em que a cidade - que para muitos nunca sairia do seu provincianismo material, por ser terra de funcionários públicos - saiu da sua letargia, contornou e subiu o Morro do Antão, afogou o Estreito e, não achando mais chão, está subindo aos céus e conquistando o mar.
Se eu gostava mais da cidade antiga? Não, propriamente. Apesar de saudosista, amo cada vez mais a minha cidade. Ela é assim como uma companheira. E mulher da gente não se ama só no viço da mocidade. Ama-se por toda a vida. É ou não é?...

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Crônica originalmente publicada no jornal O Estado, extraída do livro "Painéis", editado pela Fundação Catarinense de Cultura em 1982.
Abelardo Souza nasceu em Florianópolis em 18 de fevereiro de 1920 e morreu em 1986. Foi professor e inspetor geral do ensino (mestre-escola) em Santa Catarina. Era também músico, autor de hinos, canções e marchas carnavalescas.

22 fevereiro 2007

COLOMBO SALLES, O CONSTRUTOR DA 2ª PONTE

Ex-governador que construiu a ponte Colombo Salles adverte para os riscos de estrangulamento urbano em Florianópolis

ENTREVISTA COM O EX-GOVERNADOR COLOMBO MACHADO SALLES
Publicada em 15 de março de 2005 – No jornal A Notícia – Suplemento especial sobre os 30 anos de inauguração da Ponte Colombo Salles


Colombo Salles

"Capital exige planejamento cauteloso"

Estar no lugar certo na hora certa. Talvez essa condição de causa-e-efeito tenha sido determinante para que o engenheiro Colombo Machado Salles, um homem tímido, mas respeitado profissionalmente, inscrevesse seu nome em definitivo na História de Santa Catarina. Graduado pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Paraná, especializado em portos, vias e canais, ingressou no serviço público federal mediante concurso público e galgou os mais importantes postos em sua especialidade, chegando à direção do Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis. Além disso, implantou a estrutura administrativa que daria origem ao Governo do Distrito Federal e foi professor de universidades em Goiás, Brasília e Santa Catarina. Em 1970, foi surpreendido com a notícia de que seria o novo governador de Santa Catarina, o primeiro eleito de forma indireta, em substituição a Ivo Silveira. Antes mesmo de assumir, já tinha uma determinação: construir a segunda ligação entre a Ilha de Santa Catarina e o Continente. Ponte inaugurada em 8 de março de 1975 e que receberia seu nome.
Nesta entrevista exclusiva para A Notícia, concedida no dia 6 de janeiro deste ano, o ex-governador faz revelações sobre a casualidade que o levou à atividade política, sobre os principais eventos relacionados à construção da ponte e, ainda, sobre as decepções que marcaram sua vida, principalmente quanto ao aterro da Baía Sul.

A Notícia – Quando é que o senhor percebeu a necessidade de uma segunda ponte entre a Ilha de Santa Catarina e o Continente?
Colombo Salles
– Foi em janeiro de 1969. Eu trabalhava no Ministério dos Transportes, ligado diretamente ao ministro Mário Andreazza. Um dia ele me chamou e disse: "Tenho aqui uma correspondência oficial vinda do Itamaraty. Está lacrada. Eu sei o que é". Respondi-lhe: "Se está lacrada, não quero saber". Então ele me deu a determinação: "O senhor vai a Santa Catarina, entregar ao governador do Estado, doutor Ivo Silveira. Vai para casa agora e não comenta isso com ninguém. Voei num avião da Cruzeiro do Sul que ia direto para a capital catarinense. Quando eu abri o Jornal do Brasil, o conteúdo da minha correspondência estava todo ali. Chegando a Florianópolis, fui para o Palácio da Agronômica. O governador já tinha lido o jornal. Quando lhe entreguei a correspondência secreta ele disse: "Acho que já conheço o conteúdo". Abriu. Era do Ministério das Relações Exteriores comunicando que havia ocorrido problemas em duas pontes nos Estados Unidos (Silver Bridge, sobre o rio Ohio, e St. Mary Bridge, em West Virginia), similares à Hercílio Luz. Eram pontes pênseis projetadas para rodovia e ferrovia. Era um modelo só, com um cálculo só. É ponte só na travessia do canal, com dois viadutos laterais. Essa ponte do canal era sustentada por barras que têm um pino no meio. Lá nos Estados Unidos houve uma ruptura desse olhal que ligava as duas hastes.

AN – Os catarinenses, então, corriam o risco de perder a única ligação da capital com o continente?
Colombo – Como das três só tinha ficado de pé a Hercílio Luz, o Ministério achou por bem recomendar uma vistoria. Entreguei a correspondência para o governador. Minha missão foi cumprida. Fui a Laguna e voltei a Florianópolis. O governador me disse que ia se dirigir diretamente ao presidente da República. Mais tarde Andreazza me disse que Ivo Silveira havia feito uma exposição de motivos ao presidente da República, pedindo dispensa de concorrência pública para construção de uma outra ponte. Não vi o texto, só soube pelo ministro.

AN – O senhor continuou em Brasília?
Colombo
– Não. Andreazza me mandou para Santa Catarina, para trabalhar no Governo do Estado. O ministro queria o meu apoio no Estado para a sua eventual candidatura à Presidência da República. Ivo Silveira me nomeou para o Plameg (Plano de Metas do Governo). Três meses depois, recebi um telefonema de Andreazza, me convocando de novo para Brasília, onde assumiria a diretoria do DNPVN. Era o auge da minha carreira, o ponto mais alto. Pedi demissão do Governo do Estado e assumi o departamento. Tempos depois, fui convidado para dar uma palestra em São Paulo, cujo tema era justamente a minha especialidade técnica. Quando eu estava no meio da exposição, o presidente do diretório acadêmico surgiu e me interrompeu. Quando a gente está fazendo uma exposição numa universidade e surge no meio o presidente do diretório a gente pensa: "Dei uma bola fora". Pior ainda, o assunto não era muito bem recebido pela população. O rapaz disse: "Eu estou interrompendo porque a Hora do Brasil acaba de anunciar que o nosso palestrante foi indicado para a eleição indireta, pela Assembléia Legislativa, para o Governo do Estado de Santa Catarina". Me preparei para uma vaia.

AN – Foi aí que o senhor soube?
Colombo
– Foi. Eu soube pelo estudante. Nunca ninguém me falou quem teria sido o responsável. Sabia que o doutor Muniz Aragão (secretário da Saúde do governo Ivo Silveira) era candidato, e ele era um homem muito correto. Pronto para ouvir uma vaia depois que o líder estudantil falou, para surpresa minha, fui aplaudido. Aí acabou a palestra, acabou tudo. Voltei para casa no dia seguinte e depois fui falar com o Andreazza. Ele disse: "Vai deixar o cargo que você gosta para ocupar um cargo político?".

AN – Quem escolheu o senhor?
Colombo
– Não sei. Desconfio. O Andreazza dizia: "Você está maluco".

AN – Mas não foi o Andreazza?
Colombo
- Não foi ele.

AN – O senhor procurou saber?
Colombo
– Sim. Mas fui ao presidente Emílio Médici, ele não me disse nada. "Presidente, meu último ancestral político foi o Lauro Müller, irmão da minha avó. E o Felipe Schmidt, que era primo do meu pai. Meu pai não teve atividade política e eu fui criado na geração do Getúlio, quando, como o senhor sabe, não havia manifestação política, não havia nada. Nunca me envolvi em política. Nunca assisti um comício. Ele olhou para mim e disse: "Eu também não". Presidente, o que é que eu faço? "Vai trabalhar, vai". Ele me tratava com muito carinho. Fizeram muita injustiça com ele, Médici não era esse homem de quem falam, de "era de chumbo". Governei Santa Catarina durante quatro anos, nunca ninguém foi agredido com atos, gestos, palavras, ninguém foi preso.
Tinha uns processos na CGI, duas personalidades importantes. O almirante estava sozinho aqui, convivia muito com agente, fizemos amizade. Um dia, uma personalidade daqui, de muito respeito, me procurou, triste porque tinha um processo na Comissão Geral de Inquérito (CGI) contra ele. Um industrial de Blumenau também estava sendo investigado.

AN – Quais eram os nomes?
Colombo
– Embora já tenham morrido, prefiro não citar os nomes. Falei para o almirante sobre o que havia na CGI. Nada. No outro dia, me telefonou. Um deles era uma situação tão absurda, que mandei eliminar. O outro era problema de recolhimento de impostos. A pessoa recolheu, tudo certo.

AN – Já havia um projeto para a ponte quando o senhor assumiu?
Colombo
– O projeto do aterro da Baía Sul é de minha autoria. O governador Celso Ramos (administrou o Estado no período de 1961 a 1965) gostou muito, conseguiu a aprovação e na transferência dos documentos do ministério da Viação e Obras Públicas (depois Transportes), do Rio para Brasília os documentos desapareceram. Quando eu assumi, o aterro já estava aprovado. Como eu tinha sido presidente do conselho de administração da Companhia Brasileira de Dragagem, na qualidade de diretor geral do DPVN, consegui imediatamente a draga. Muito antes de começar a construção da ponte, o aterro já estava quase pronto. Com o projeto do aterro, já fizeram também o planejamento para duas pontes e o projeto dos túneis. Tinha recursos para isso, que foram utilizados para ampliar a Beira-Mar Norte. Não quis começar o aterro do Saco dos Limões (Via Expressa Sul) porque não ia terminar, era uma questão de ética.

AN – É certo afirmar que o aterro não seguiu o projeto original?
Colombo
– Como tinha esse aterro, eles projetaram duas pontes, que se chamariam Paulo Fontes, que projetou o primeiro aterro e Gustavo Richard, que era o vice-governador de Lauro Müller. Foi feito então um projeto de ocupação do aterro. Era muito bonito, foi aprovado pela lei federal 5.013, de 9 de outubro de 1974. Foi revogado pela lei 5.483 de 9 de outubro de 1978, da Assembléia Legislativa. Foi revogado porque a Câmara dos Vereadores de Florianópolis não aprovou o projeto, deixou em banho-maria. Haveria um centro comercial, que manteria todo o sistema comercial. Hoje está uma balbúrdia no trânsito, porque o comércio grande está se deslocando. Havia um projeto de um shopping, onde haveria local exclusivo para o comércio. Havia uma parte de edifícios um centro administrativo oficial. Havia uma parte para escritórios, outra para residências de pessoas de baixa renda, para não gastar com transporte, e uma área reservada para um centro ecumênico.

AN – Por que a Câmara de Vereadores não aprovou?
Colombo
– Esse projeto chegou à Câmara de Vereadores e foi bombardeado. O vereador Valdemar da Silva Filho (Caruso) dizia que o aterro era "o enterro do Desterro". Por causa da oposição, que dizia que afastei Florianópolis do mar, a Câmara não aprovou. Outros governadores fizeram modificações posteriores. Tenho um carinho especial pelo aterro, porque nasceu da minha cabeça mas virou uma balbúrdia.

AN – Não havia outra solução?
Colombo
– Foi um problema econômico também. Economizamos um vão de ponte, a ponte ficou mais curta, mais barata. Sabe qual é a profundidade das fundações? Nove metros de água e 70 metros de argila orgânica. Desci várias vezes para conhecer os trabalhos. As fundações são caras e é a parte que não aparece.

AN – E aquela estação de tratamento de esgotos? Havia alguma previsão?
Colombo
– Havia um projeto de esgoto, comprei várias áreas de decantação, não sei porque não executaram. Aí resolveram colocar o esgoto no aterro. É uma pena, na entrada na cidade.

AN – O fim do Miramar é motivo para lamentação na capital. Como é que isso ocorreu?
Colombo
– Ali não dava para chegar, era lodo puro, não dava para usar. Quando a maré subia, chegava nas lojas. Sou muito criticado por causa do Miramar. Mas o Miramar caiu, não foi derrubado. Era um trapiche coberto, não tinha estilo, não tinha nada. Era freqüentado por pessoas sem muito conceito. À noite ninguém ia ali. Cheguei a limpar o local, fiz várias exposições, não ia ninguém, porque quem freqüentava não tinha bom conceito. Quando veio a draga, a estrutura foi abalada.
Muitos dos que criticam o Miramar nem conheceram o trapiche.

AN – Como é que o senhor avalia o futuro de Florianópolis?
Colombo
– Urge a necessidade de uma revisão de planejamento cauteloso, com base em pesquisas e competência para o futuro. A desordem grassou aqui, cresceu, e hoje está difícil dirigir pelas ruas projetadas, antigas. Há necessidade de um sistema viário secundário, como a via expressa, que tem um ramo que liga à Beira-Mar Norte (Rua Antônio Edu Vieira). Ela foi projetada para ser a continuação da Via Expressa. Tem que encontrar outra solução.

AN – O senhor saiu do governo frustrado com alguma coisa?
Colombo
– No setor de transportes, de todos os 25 projetos que tinha para realizar, o único que não concluí foi o da BR-282. Mas a estrada longitudinal ligando São Miguel d'Oeste a Lages só foi possível porque fizemos de Rio do Sul a Campos Novos. Então, houve um dispêndio que não estava previsto no projeto. E até hoje não concluíram a BR. Isso me decepcionou. Também o processo não foi debatido. A Câmara de Vereadores me decepcionou não aprovando a urbanização do aterro. A cidade teria outro aspecto.

15 fevereiro 2007

PERCEBI tardiamente o quanto é difícil postar comentários aqui. Para comentar, é preciso ser usuário do sistema Blogger-Google-Gmail. Quem tiver interesse em comentar sem maiores dificuldades, pode me mandar e-mail para algum dos endereços a seguir.

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Todas as críticas e sugestões serão bem-vindas e publicadas, desde que, evidentemente, não sejam ofensivas.

Grato, Carlos Damião, editor-responsável por este blog

14 fevereiro 2007

O Preço da Ilusão – Parte 1


A matéria que reproduzimos hoje foi publicada na edição número 67 do Jornal da Semana, tablóide que circulou em Florianópolis entre 1978 e 1980. Trata de “O Preço da Ilusão”, o primeiro longa-metragem rodado na capital catarinense, em 1957, sob a responsabilidade do Grupo Sul.
O material foi inteiramente digitalizado (inclusive as fotos) pelo autor deste blog, que conserva os originais do jornal (e algumas imagens) em seus arquivos.


Imagine-se viver numa cidade como Florianópolis, há 30 anos, com uma população ultraconservadora e provinciana – não ultrapassando a casa dos 80 mil habitantes. Naquele tempo ainda havia carrinhos-de-cavalo, os carrões dos playboys, o Miramar, o porto e uns poucos arranha-céus. As moças ainda faziam o 'footing' em torno da Praça 15 e usavam vestidos que lhes escondiam os joelhos. Rapazes e senhores envergavam seus ternos de linho, usados de preferência com uma camisa branca e com uma gravata preta, fininha – capazes de causas 'ohs' de admiração nas moças. A cidade era pacata e, até, recatada: parecia parada no tempo, avessa a mudanças.
Esta seria, é claro, a primeira impressão de algum incauto observador que enxergasse apenas a superfície da cidade. Sim, pois nem tudo era pacato e nem tudo cheirava a atraso e monotonia: havia o Grupo Sul e uma inquietação anormal. Havia o Sul, um grupo que, em fins da década de 1940, empurrara o ranço parnasiano da Ilha para o purgatório, trazendo, para a antiga “Exiliópolis” do século 19, um movimento que transformara a arte e a cultura brasileira no princípio do século (20): o modernismo.
Para aquela pacata e provinciana Florianópolis, o florescimento de inquietações incomuns representava, sem dúvida, uma ameaça às estruturas culturais convencionais, conservadoras e distantes da realidade. Temia-se o Grupo Sul como se teme o vento Sul, que sempre traz frio, chuva e certa insegurança. Daquele grupo de rapazes e moças, inquietos e renovadores, nasceria todo um trabalho em prol da cultura de Santa Catarina, até então estagnada e alienante.
Um dos grandes produtos do Grupo Sul foi a revista Sul, de literatura e debate, editada ininterruptamente durante dez anos e responsável pela difusão da cultura catarinense em todo o mundo. Dos escritores que iniciaram publicando trabalhos na Sul muitos adquiriram projeção nacional e internacional. É o caso de Salim Miguel, Silveira de Souza, Eglê Malheiros, Aníbal Nunes Pires, Glauco Rodrigues Corrêa, Hugo Mund Jr., Walmor Cardoso da Silva e outros. Rompia-se, de fato, com uma literatura arcaica, provinciana e conservadora e partia-se para uma literatura participante, profundamente vinculada à vida, ao real.

CINE-CLUBE

A revista Sul constituiu apenas uma parte do trabalho do grupo. Paralelamente, aqueles rapazes e moças iniciavam outra atividade: o teatro, que revelaria nomes como Ody Fraga e Silva que, mais tarde, viria a ser um bem-sucedido diretor de cinema brasileiro. Também no cinema poderia ser citado Marcos Farias, integrante do grupo.
Nas artes plásticas – outra atividade constante do Grupo Sul – seriam revelados nomes como os de Hassis, Ernesto Meyer Filho, Dimas Rosa, Aldo Nunes e Hugo Mund Jr. O grupo se fortalecia, inquietava a cidade. Ao mesmo tempo, criava-se o primeiro museu de arte moderna do país e redescobria-se Martinho de Haro.
Ainda em fins da década de 1940 surgiria em Florianópolis o primeiro cine-clube de sua história, projetando na época os maiores filmes do cinema mundial. Trazia-se para a pacata Ilha realizações de diretores que, à época, revolucionavam a sétima arte, introduzindo novas formas de pensar a realidade. Assim, os habitantes da cidade, acostumados com a ingenuidade das produções da Atlântida e de Hollywood, começaram pouco a pouco a tomar conhecimento de nomes como Vittorio de Sica, Orson Welles, Alberto Lattuada e outros.
Na revista Sul iniciavam-se discussões sobre a função do cinema e do cine-clube. No Rio de Janeiro, Nelson Pereira dos Santos acabava de rodar “Rio 40 Graus” – um marco na história cinematográfica nacional, já que representa o início de uma nova fase para a Sétima Arte no Brasil: o Cinema Novo. O filme partiu de uma idéia de Arnaldo Farias de fixar os mais variados aspectos da cidade, tendo como ligação alguns pequenos vendedores de amendoim. Nelson Pereira dos Santos formou uma espécie de cooperativa, colocando um novo tipo de produção, tanto em método como em proposta.

O PREÇO DA ILUSÃO

A proposta do cinema novo atingiu Santa Catarina e, diretamente, o Grupo Sul. Repentinamente, surgiu a idéia de realização de um filme, aqui, na Ilha, como resposta ao “Rio 40 Graus” de Nelson Pereira dos Santos, mostrando identicamente, alguns aspectos da cidade. O grupo discutiu e partiu para a prática.
Dizia Salim Miguel à revista Panorama, do Paraná, em 1958: "A idéia de se abandonar a teorização para a prática vinha de longe. Chega um dia que as salas escuras não bastam. Há necessidade da pessoa que se interessa por cinema se experimentar, fazer também suas tentativas. Debates, discussões acaloradas em torno desta ou daquela escola, análise de filmes, tudo conduzia os mais inquietos, canalizava aquele esforço e aquela pesquisa para um determinado fim".
O grupo se organizou e pediu o apoio de intelectuais experientes na área, como Nilton Nascimento e E. M. Santos, vindos respectivamente de Porto Alegre e São Paulo. Com a ajuda financeira de pessoas da cidade e com um crédito obtido através do Banco do Estado de São Paulo, constituíram a Equipe Cinematográfica Alberto Cavalcanti, da Sul Cine-Produções, e lançaram-se à aventura – “ousadia”, no dizer de Eglê Malheiros – de fazer um filme em Florianópolis, em 1957. E fizeram "O Preço da Ilusão", uma idéia ambiciosa, segundo Eglê, mas que representou o esforço do Grupo Sul para acompanhar os passos iniciais daquele movimento que revolucionaria o cinema brasileiro.

CRÔNICA DE UMA CIDADE

"Contando apenas com dois papéis centrais", dizia Salim Miguel à mesma revista Panorama em 1958, "e cerca de 80 pessoas com participação de importância relativa, além de centenas de figurantes, pode-se dizer que os verdadeiros “artistas do filme” são a cidade de Florianópolis e a ponte Hercílio Luz. Praias, ruas, bares, becos, recantos pitorescos, praças e jardins, mercado, e em especial a ponte, atravessam o filme de ponta a ponta, dão-lhe uma fisionomia própria, particular, característica. Ali, então, uma humanidade como todas, com seus sonhos e desilusões, esperanças e desventuras, se locomove. E a câmera procura captar com precisão tudo aquilo".
Esta seria uma definição aproximada do que pretende ser "O Preço da Ilusão": a crônica, o painel de uma cidade, através da construção de duas histórias em contraponto. Com 70% de exteriores – proposta, aliás, intencional – "O Preço da Ilusão" pretendeu ser uma aula prática do que os rapazes e moças da Sul aprenderam com o neo-realismo italiano e com o cine-novismo brasileiro, então emergente.
Nesta reportagem, o Jornal da Semana reconstitui para a Florianópolis de hoje – urbanizada e a caminho da explosão – os caminhos percorridos por aqueles jovens que, na década de 1950, ousaram pôr em dúvida o marasmo e o provincianismo, construindo, com garra, o primeiro filme da história de Santa Catarina.

[Primeira retranca da matéria publicada no Jornal de Semana, edição número 67, 10 a 17 de maio de 1980].