10 março 2007

Meditações sobre a cidade

Por Abelardo Souza (*)

Para quem, através de leituras, fotografias e, mesmo, lembranças (hoje, em raros casos), se detém na imagem de Florianópolis da última década do século passado até meados dos anos cinqüenta deste, há de admirar-se e até de espantar-se pelo tanto que cresceu esta cidade, se comparado aquele período com o que se lhe tem seguido até hoje, mais precisamente a partir dos anos sessenta.
As mutações por que passam os lugares onde nascemos ou deitamos raízes e nos quais nos deixamos estar, por princípios avitos de acomodação, são semelhantes, mutatis mutandis, às mutações da moda. Quase não as percebemos e nos parecem corriqueiras no seu discreto passar e no seu constante evolver. Mas, se as comparamos com imagens do passado, muita vez não tão longínquas (fotografias e filmes, principalmente), o espanto é grande: "Ora, veja isto aqui! amigo: em 1945, o Estreito parecia uma cidadezinha do far-west americano. Em 1940, não possuía nenhuma rua calçada. - E esta aqui: em 1953, não havia nem sombra de Estação Rodoviária junto à Maternidade. A avenida Mauro Ramos nem era calçada. - E essas elegantes aqui no "12 de Agosto" de 1960. Coisa horrorosa! Dizer que isto já foi moda! Santo Deus! - Olha aqui os calções dos jogadores das seleções de futebol na Copa da Suécia, e 58. Parecem mais balões do que calções"...
Não é assim mesmo, caro leitor? Pois, sabiam os mais moços que, há uns trinta e oito anos, por volta de 1940 (será tanto tempo? Para mim, parece que foi ontem), este lugar, que já foi Mei-en-bipe, Ilha dos Patos, Desterro e, agora, é Florianópolis, ainda era o paraíso da pacatez e da pasmaceira. Tenha o prezado leitor presente o hoje e o confronte com estas lembranças do ontem, que eu conheci.
Em tardes ensolaradas de primavera, descia-se a Rua Esteves Júnior, cheia de casarões, chácaras e outras belezas. Um ar de modorra ali pairava. Um silêncio benfazejo, assustado aqui e ali pelo canto dos pássaros e pelos assobios do vento nordeste, que se encanava por ali, vindo da Praia de Fora. Atravessava-se calmamente a Avenida Rio Branco sem calçamento, a única via que tinha o topete de cortar a Esteves Júnior. Automóveis? Se você visse algum por ali, ganharia um prêmio. Deserto também de gente. Um ou outro gato pingado, como a gente, perdido naqueles dois mundos de caminho.
Se, chegado ao Jardim do Katcips (bem que poderia ter esse nome), você dobrasse à direita, lá ia pela Bocaiúva a fora ("Praia de Fora faceira; berço da aristocracia"). Sempre sobre o chão de terra, você alcançava a Agronômica, a Penitenciária, a Trindade... Se dobrasse à esquerda, entrava na bucólica Rua Almirante Lamego, antiga de Sant'Ana, também com leito de terra. No fim desta, as cercanias da Praia do Müller eram quase uma floresta. Ali podia esconder-se até o crime. Foi o que ocorreu, pouco antes de 1940, com uma pobre mulher, que teve o seu corpo barbaramente esfaqueado, nunca se soube por quem. O ambiente deserto fora propício ao crime perfeito.
A Rua Presidente Coutinho, também sem calçamento, era praticamente mato só. Quem se lembra da "Capitoa", pobre mulher, mas rica reprodutora de crianças de todas as cores, que a seguiam como um batalhão pelas ruas da cidade a guerrear a fome com as armas da esmola... O batalhão da miséria era alvo predileto da chacota popular. Ainda hoje se ri dos desgraçados... Mas, eu falava na rua Presidente Coutinho. Pois, a Capitoa tinha ali o seu barraco. Quase na esquina desta com a Rua Nereu Ramos.
Um dos lugares mais solitários era a Praça Getúlio Vargas. Hoje, aliás, ainda conserva um toque de soledade. No tocante a gente, bem entendido, porque por automóvel o seu jardim se vê bolinado por todos os lados. O Largo Fagundes (feliz e finalmente, restituíram-lhe o antigo nome) parecia, com raras exceções, a praça da Enseada do Brito. A Felipe Schmidt acabava, como rua, no atual prédio da família Amin Helou. A Rua Hoepcke, hoje calçada, era a maior perambeira que já se viu nesta cidade. Os que a tinham de subir ou descer bem podiam receber a medalha de alpinistas. A estrada do Saco dos Limões empatava com as de desenho animado. O Campo do Manejo (Largo General Osório), talvez há mais de um século com a mesma área e casario, ainda teria de esperar quinze anos para dar lugar ao atual Instituto Estadual de Educação. Por quase todo esse tempo, viveu cercado - ninguém sabe a troco de quê - por alta parede de tábuas. Sobre esse local, permitam-me contar-lhes um fato pitoresco: quando o presidente Vargas aqui esteve a inaugurar o Grupo Escolar do Saco dos Limões, o interventor Nereu Ramos o levou a visitar aquela área, onde já se visava construir o novo Instituto de Educação. Ali chegando a comitiva, o presidente viu alguns garotos a disputar uma "pelada". Amigo das crianças, chamou os garotos e lhes disse mais ou menos isto: "O Doutor Nereu me disse que vai mandar construir aqui uma grande escola e para isso vai ter de cercar todo este largo. Como farão vocês, então, para jogar o seu futebol?". Um dos garotos não titubeou: "Nós pulamos a cerca".
Pois, meus amigos, tudo isto e mais alguma coisa que o espaço não permite arrolar, virou em tão pouco tempo um passado que parece século. No entanto, pouco foi o tempo em que a cidade - que para muitos nunca sairia do seu provincianismo material, por ser terra de funcionários públicos - saiu da sua letargia, contornou e subiu o Morro do Antão, afogou o Estreito e, não achando mais chão, está subindo aos céus e conquistando o mar.
Se eu gostava mais da cidade antiga? Não, propriamente. Apesar de saudosista, amo cada vez mais a minha cidade. Ela é assim como uma companheira. E mulher da gente não se ama só no viço da mocidade. Ama-se por toda a vida. É ou não é?...

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Crônica originalmente publicada no jornal O Estado, extraída do livro "Painéis", editado pela Fundação Catarinense de Cultura em 1982.
Abelardo Souza nasceu em Florianópolis em 18 de fevereiro de 1920 e morreu em 1986. Foi professor e inspetor geral do ensino (mestre-escola) em Santa Catarina. Era também músico, autor de hinos, canções e marchas carnavalescas.

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